Até a primeira semana de setembro, o programa de televisão inglês This Morning não tinha nenhuma novidade. Phillip Schofield, o apresentador, atende ligações de telespectadores, gira uma roda da fortuna e distribui prêmios. Porém, a edição do dia 8 de setembro trouxe uma mudança. No melhor estilo Black Mirror, série de ficção científica que mostra uma realidade distópica no futuro próximo, um dos prêmios passou a ser o pagamento de quatro contas de energia elétrica. Há boas razões para isso. O custo da eletricidade subiu 80% em comparação com outubro do ano passado. Em média, cada residência inglesa está gastando o equivalente a R$ 1.780 por mês com eletricidade.

É bastante provável que essa história seja relembrada em alguns anos para mostrar o tamanho da crise de 2022. Vários fatores negativos conseguiram interromper uma longa história de crescimento que durava décadas. A conjugação entre a escassez energética decorrente da invasão russa à Ucrânia, o aumento dos juros na Europa e nos Estados Unidos para conter a inflação e a desaceleração da economia chinesa devido a uma atitude linha dura com o coronavírus colocaram o ritmo do Produto Interno Bruto (PIB) mundial em um patamar estruturalmente baixo.

Os dados mostram isso. Em 2021, a inflação média nos Estados Unidos, Inglaterra e Zona do Euro estava ao redor de 3%. Neste ano, a mediana das estimativas é de 9%, o triplo. O comportamento do PIB é semelhante. No ano passado, os crescimentos médios chegaram perto de 5%, em grande parte devido à retomada pós-pandemia. Atualmente, a projeção é a metade disso. E apesar de os números parecerem irrelevantes, uma queda de um centésimo de ponto percentual no crescimento da economia americana representa US$ 2,1 bilhões a menos em negócios para as empresas e em consumo para as famílias.

SEM FLEUGMA BRITÂNICA Consumidores ingleses protestam contra a alta da energia elétrica e de outros serviços, cujos preços chegaram a avançar 80% em relação a 2021 (Crédito:Wiktor Szymanowicz)

O que ocorre na Inglaterra é uma síntese bastante didática dos problemas globais, sublinhada pela morte da rainha Elisabeth II, aos 96 anos. O país perdeu o status de potência imperial durante seu longo reinado, mas conseguiu manter sua relevância no cenário internacional. Porém, os últimos tempos não foram fáceis. Aprovada por um plebiscito em 2017, a saída do Reino Unido da União Europeia, conhecida como Brexit, reergueu barreiras comerciais e alfandegárias e elevou estruturalmente os custos da economia, sem falar no aumento do isolamento inglês. “O Brexit desencadeou uma série de mudanças regulatórias”, disse a presidente da Câmara Britânica de Comércio e Indústria no Brasil (Britcham), Ana Paula Vitelli. Não é o único problema. “O Reino Unido vive um momento político e econômico sensível, principalmente pelo fato de a inflação do país ter sido registrada em 10% no mês de julho, a maior dos últimos 40 anos”, afirmou.

Agora, a sucessão que colocou no trono o pouco carismático Charles III pode acelerar a saída de países do Commonwealth, a comunidade das antigas colônias. Politicamente independentes, esses países têm o soberano inglês como chefe de Estado. De uns tempos para cá, porém, a vocação tem sido optar pelo regime republicano e se livrar da velha ordem. Segundo o PhD em Direito e pesquisador da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Lier Pires Ferreira, a Comunidade deverá passar por um processo de desagregação. “Barbados foi o último país a sair da comunidade, em 2021, mas vários outros membros, como a Jamaica, ameaçam fazer a mesma coisa”, disse Ferreira. “Sem uma Commonwealth forte, a economia e principalmente o prestígio internacional inglês tendem a derreter gradualmente.”

ROTAS INTERROMPIDAS Apesar de a dissolução do Commonwealth parecer mais uma daquelas questões boas para seminários de política internacional e sem importância prática, esse fenômeno indica que será muito mais difícil para qualquer país, Brasil inclusive, retomar o crescimento vigoroso da década passada. A comparação entre a turbulência provocada pela pandemia e o solavanco anterior, a crise do subprime em 2008, mostra que a situação está bem pior.

INFLAÇÃO Para Ana Paula Vitelli, presidente da Câmara Britânica de Comércio e Indústria no Brasil, o Reino Unido vive um momento político e econômico sensível devido à maior inflação em 40 anos. (Crédito:Divulgação)

Mais de uma década atrás, o enorme problema financeiro provocado pela concessão sistemática de empréstimos imobiliários de má qualidade sacudiu o mercado, levou alguns bancos de investimento de grande porte a fecharem as portas e aumentou dramaticamente os despejos de mutuários nos Estados Unidos. Para combater a crise do subprime, o Tesouro americano estruturou um programa de ajuste aos bancos, que depois foi estendido para montadoras de automóveis. Resumidamente, o programa injetou US$ 1,5 trilhão na economia americana.

Isso atenuou os efeitos mais graves da crise e teve um efeito colateral benéfico para o Brasil. Esse oceano de liquidez gradualmente irrigou a economia global, manteve elevados os preços das commodities e sustentou alguns anos prósperos para a economia brasileira. Na época, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que, para o Brasil, o tsunami financeiro global seria apenas uma “marolinha”. Lula estava certo, mas pelos motivos errados. A prosperidade se deveu não a méritos de seu governo, mas a uma conjuntura internacional bastante favorável.

Para conter o impacto da pandemia, o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, injetou o equivalente a US$ 4,5 trilhões na economia americana em pouco menos de dois anos. O impacto, porém, foi elevar a inflação e não estimular a economia. Por que essa diferença? Há várias causas, como a redução da oferta de trabalhadores nos Estados Unidos e a reorientação estratégica da economia da China.

TOLERÂNCIA ZERO Teste de coronavírus na China. Atitude rígida do governo comprometeu o crescimento econômico. (Crédito: Guo Cheng)

Durante décadas, qualquer crescimento surpreendentemente positivo era automaticamente classificado como chinês. O país asiático se especializou em ser o fornecedor de tudo. Começou com produtos baratos de má qualidade, agora são iPhones. Isso fez sua economia desabrochar. Porém, também provocou distorções, especulação imobiliária e devastação ambiental. A situação ficou tão séria que até mesmo o pouco democrático governo chinês decidiu corrigir a rota, dando mais ênfase ao mercado interno. A consequência foi uma desaceleração no ritmo dos negócios, com a expansão do PIB recuando para a metade inferior da faixa de um dígito. Mais do que isso, como a pandemia começou na China, as autoridades vêm mantendo uma atitude rígida para combatê-la.

Isso afeta a economia e os mercados. Um bom exemplo são os preços do petróleo. As cotações caíram quase 11% entre os dias 5 e 8 de setembro, com o preço do barril do tipo WTI recuando de US$ 91 para US$ 81. O motivo foi o anúncio, por parte da China, de que as importações do produto em agosto caíram 9,4% em relação a 2021.

MAROLINHA? Tudo isso é má notícia por aqui. Não bastasse o principal parceiro comercial do Brasil atravessar uma fase adversa, seu segundo cliente preferencial também tem problemas para resolver. A inflação americana, assim como a da Europa, segue nos patamares mais elevados em 40 anos. Nos 12 meses até agosto, os preços ao consumidor subiram 8,3%, mais que o quádruplo da meta de 2% estabelecida pelo Fed. Jerome Powell, presidente da instituição, já declarou que os juros americanos seguirão subindo até fazer a inflação convergir para a meta. Ele não dourou a pílula. “Esse esforço”, disse ele em agosto, “trará algumas dores para as famílias e para as empresas. Infelizmente, esses são os custos necessários para reduzir a inflação”. Ou seja, consumidores americanos com menos dinheiro para gastar e dólar mais valorizado, pressionando a inflação por aqui. Com tudo isso, diferentemente da marolinha de 2008, a turbulência global vai sacudir bastante a economia brasileira.