SÃO PAULO/BRASÍLIA (Reuters) -Com uma crise militar caindo em seu colo após os ataques aos Três Poderes em 8 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou uma estratégia mista: se escancarou pela primeira vez a desconfiança com a caserna, aproveita agora o repúdio generalizado às cenas de vandalismo para trazer os militares à mesa e negociar um apaziguamento em posição mais favorável.

Lula disse ter perdido a confiança em parte dos militares, ele afirmou que “gente das Forças Armadas” foi conivente com os ataques, apontou falha nos órgãos de inteligência –amplamente comandado por militares– e disse que as Forças Armadas, que foram “poluídas” pelo bolsonarismo, não são o poder moderador “como pensam que são”.

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É a primeira vez, desde 1989, que um presidente eleito civil brasileiro questiona abertamente a lealdade das Forças Armadas, num contexto de uma também inédita tentativa de reverter pela força um resultado eleitoral no Brasil.

Saindo da retórica para a ação, Lula também dispensou nos últimos dias dezenas de militares que atuavam no Palácio da Alvorada e na secretaria do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência responsável pela segurança presidencial. Ainda, o governo estuda abertamente modelos de segurança presidencial alternativos ao atual, predominantemente feito por membros das Forças Armadas.

Ao mesmo tempo, o presidente trabalha internamente para acalmar os ânimos e, se cobra punição de militares envolvidos com os ataques, conversa para garantir que as forças recebem recursos e um tratamento adequado.

A escalada Lula com o setor castrense se apoia no amplo repúdio aos ataques de vândalos apoiadores radicais do ex-presidente Jair Bolsonaro –vários deles abrigados desde o segundo turno da eleição em acampamentos golpistas em frente a quartéis com a conivência das lideranças militares–, especialmente na demonstração de união dos chefes dos Poderes após os ataques ao Palácio do Planalto e aos prédios do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

“Me parece que esse momento, em que o Lula tem esse consenso político institucional em seu favor, permite a ele forçar o diálogo com as cúpulas militares. O consenso não é robusto o suficiente para que ele force uma enorme transformação do campo de jogo”, disse à Reuters o analista político e CEO da Dharma Political Risk, Creomar de Souza.

Na esteira das críticas públicas de Lula, os ministros da Casa Civil, Rui Costa, e da Defesa, José Múcio, almoçaram nesta semana com os comandantes das três forças, num encontro descrito como “bom” por uma fonte com conhecimento do assunto.

De acordo com esta fonte, o almoço serviu para “colocar ordem na casa”, e também foi usado para sinalizar disposição do governo em atender pleitos dos militares na área de equipamentos e financiamento para projetos prioritários.

A fonte disse ainda que os comandantes mostraram certo grau de constrangimento com os episódios de 8 de janeiro, que criou uma imagem de Forças Armadas coniventes com os ataques e sem preparo para controlar o caos que começou na frente dos QGs. O encontro mostrou comandantes receptivos a virar a página e construir uma relação institucional com o governo, contou a fonte.

“Houve cobrança mas também houve afago por parte do governo”, disse a fonte.

Nessa mesma linha, Lula disse em entrevista à GloboNews na quarta que, na reunião com os comandantes, quer tratar do fortalecimento da indústria nacional de defesa e expressar aos chefes das forças que não pode haver politização na caserna. Disse explicitamente querer “contemporizar”, não ir “logo para a porrada” como desejam alguns, segundo ele.

Na reunião com os comandantes nesta sexta, por exemplo, o presidente terá a companhia de Josué Gomes da Silva, que aparece na agenda como presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), embora esteja travando uma batalha interna para seguir no posto. A ideia da presença do empresário, aliado de Lula, é discutir com a cúpula das forças o crescimento da indústria de equipamentos de defesa.

“Há uma compreensão de que não há espaço para um governo que está iniciando, e que tem um momento que lhe é favorável, de assumir a lógica de confronto ou de confronto aberto”, disse Creomar, comparando a estratégia do presidente com a de uma pessoa que “lida com mingau quente no prato”.

CAPÍTULO MAL RESOLVIDO

Para o pesquisador de assuntos militares e professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) João Roberto Martins Filho, Lula acertou ao recusar a proposta de decretação de uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO) no dia dos ataques, pois recorrer aos militares para controlar a situação o teria enfraquecido.

Em vez disso, o presidente optou por uma intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal– e o episódio deixa o presidente, na avaliação de Martins, em posição fortalecida para as futuras conversas com a cúpula das Forças Armadas.

“Nós estamos diante de uma situação que tem dois traços: um deles é um desgaste muito grande das Forças Armadas… Por outro lado, o avanço temporário do Lula. Eu não achei que ele ia ter uma oportunidade dessa tão cedo, assim, já no comecinho do governo”, disse Martins.

“Eu acho que isso tudo tem potencial para colocar os militares meio na defensiva e ao mesmo tempo, na melhor das hipóteses, fazer algum setor do generalato perceber que, nesse rumo que eles estão indo, a situação vai ficando cada vez pior para eles”, avaliou.

Martins disse ainda esperar que Lula opte por encarar, e não ignorar, os problemas na relação do poder civil com os militares no Brasil, mais uma vez evidenciado nos ataques de 8 de janeiro e na presença maciça de membros das Forças Armadas em cargos civis durante o governo Bolsonaro.

“Vamos esperar um pouco, porque, na verdade, o problema militar continua”, disse Martins. “A situação sempre pode ficar ruim de novo, porque do mesmo jeito que o bolsonarismo causou, vamos dizer, uma degradação das instituições, isso aconteceu também dentro das Forças Armadas”, aponto o professor.

Para Creomar, da Dharma, a questão da aderência dos militares às regras do jogo democrático é “mais um capítulo de uma das agendas que a Nova República não conseguiu resolver”. O analista entende que uma solução passa por um diálogo entre civis e militares e não é rápida.

“Você tem que os militares hoje são um grupo dentro da tomada de decisão, goste-se ou não. E aí tem uma lógica dentro da política que é, uma vez que você cedeu espaço para alguém, essa pessoa não vai devolver o poder conscientemente”, disse.

“Agora, de fato, isso não vai ser resolvido em um governo”, afirmou.